Os efeitos colaterais da era da informação vão chegando e se tornando os nossos novos desafios.
É extremamente comum recebermos incentivos para que nos questionemos mais (e também é comum incentivarmos as pessoas ao nosso redor a fazer o mesmo), grandes estudiosos e intelectuais sempre fomentaram essa técnica tão subestimada na busca por conhecimento, e contra políticas de pão e circo e alienamento social.
Questione-se e questione tudo e toda informação que você recebe, na busca por um desenvolvimento de pensamento e do individuo como parte ativa da sociedade.
Pois tem dado resultado.
As pessoas começaram a se questionar mais e eu jamais poderia imaginar que isso se tornaria algo negativo um dia.
Não prevíamos um efeito colateral: o questionamento nu e cru como argumento de refutação e negação do conhecimento intelectual, científico e político.
Hoje podemos ver a proliferação de questionamentos dos mais variados assuntos sem nenhuma base de pesquisa intelectual, chegamos na contra mão do que o poder de questionar poderia trazer: terra-planistas, anti-vacinas, grupos que refutam dados históricos, científicos e culturais, disseminação de notícias falsas e voz para políticos extremistas.
E no meio disso como já é estrutural em países latino-americanos o surgimento de líderes políticos, regionais e formadores de opinião em questionamentos vazios – aqueles que não são baseados em nenhuma pesquisa concreta, em nenhum dado histórico ou científico, apenas o argumento vazio que um questionamento gerou.
Na obra Teoria da Opinião Pública (2019) nos é apresentado que: “A opinião — compreendida aqui como um valor, um juízo, uma convicção — advinda de um sujeito apenas se contrapõe à opinião que predomina entre a maioria dos membros em grupo. A opinião pública é aquela que emana do povo, comum a todos (ou quase todos) de uma sociedade em resposta a um determinado acontecimento.”
Ao dizer para alguém: “ei, questione-se e não se permita ser enganado” nós estamos dizendo que você precisa entender a importância de checar fatos e versões da história ou do senso comum de forma embasada, criando uma curiosidade pela busca de mais informações, sejam elas na literatura, nos estudos de campo, nas pesquisas científicas ou nos bancos de dados disponíveis de toda e qualquer Instituição – seja ela governamental, privada, civil ou estrangeira.
Questionar-se e não sair do questionamento vazio, utilizando-o como fato argumentativo, nos leva ao retrocesso e nos faz a semelhança aos tempos da Inquisição onde bastava uma palavra errada para se criar uma falsa acusação de crime.
Isso nos leva ao obscurantismo, ao anti-intelectualismo e a manipulação da opinião.
E o mais perigoso de tudo: dá a voz a falsos profetas, a falsos cientistas que tentam de maneira nefasta cegar uma população.
Quando eu me questiono sobre qualquer assunto não posso usar a minha dúvida como argumento e verdade irrefutável, não posso contrariar e negar fatos científicos e históricos sem buscar ao menos uma fonte de informação que não seja outra opinião igual a minha.
Uma pesquisa online pode te levar a N lugares com a mesma opinião que a sua, e assim como a sua – sem nenhum embasamento.
Ao negar que a terra é um globo eu preciso procurar pesquisas, viagens, registros espaciais e científicos para entender como surgiu esse fato, buscar em fontes científicas fatos que provem que minha negação é real e possível de ser verdadeira.
Eu preciso prová-la antes de disseminá-la como certeza em meus canais pessoais.
Do contrário foi criado apenas uma negação vazia, um questionamento retrocessivo que vai contra o desenvolvimento da sociedade humana.
Esse efeito colateral conseguiu se alimentar e crescer rapidamente com a democratização do acesso a internet e com as tecnologias que trouxeram o espaço online aos dispositivos que podem ser carregados no bolso, e somamos isso a um fator-problema chave: o analfabetismo funcional e político.
Na obra Relações Internacionais da América Latina, um capítulo chamado “A Difícil Construção da América do Sul” traz a seguinte problemática: “As manifestações mais exacerbadas da empáfia política de dirigentes sul-americanos ocorrem com o desrespeito a contratos internacionais, calo- te sobre empréstimos, expulsões de empresas estrangeiras e exibições de força militar diante delas, espetáculo este último que deixa embasbacados pacíficos diretores e operários no local, irrita no exterior a opinião, os investidores e os governos. Cresce a empáfia quando manifestações de massa são convocadas pelo dirigente-caudilho para anunciar tais decisões. As mais tênues manifestações da empáfia política exibem a arrogância de estar em todas as mesas de negociação do mundo, mesmo sem saber que resultados alcançar ou sem poder influir sobre eles; ou, ainda, o ciúme pelo sucesso alheio, a aversão ao enalteci- mento do outro, seja por meio de gestos e do discurso político, seja em votações de órgãos multilaterais.”
Em países latino-americanos temos a questão da desigualdade.
Desigualdade esta que é uma das falhas de nosso mercado capitalista.
Dentro do modelo capitalista, parte da população que se encontra na margem da desigualdade não teve acesso a uma educação que o possibilitasse entender seu papel na sociedade, e como a desigualdade marginaliza seu crescimento como ser humano.
O filósofo José Ortega y Gasset (1883–1955), em sua obra A Rebelião das Massas, publicada em 1929, usa o conceito de “homem-massa” para designar o sujeito inserido nas massas, caracterizando-o como aquele marcado pelo conformismo e com as condições preestabelecidas a ele. A individualidade perde força, dando vez a um processo de homogeneização e de fim das diferenças. O homem-massa não atua por si mesmo, e sim pelo desejo de manter-se comum e atuando de acordo com os demais integrantes.
Então, é mais fácil que essa população a margem da desigualdade acredite no modelo capitalista, onde eles tem a possibilidade de ascender socialmente e conquistar seu crescimento econômico assim como qualquer outro cidadão.
Não pretendo me aprofundar no que tange a questão da desigualdade e nem das falhas de um modelo capitalista liberal, mas sim, acrescentar esse fator ao que estou falando acima: como esse modelo acentua ainda mais a refutação de dados históricos e científicos em tempos de fácil acesso ao mundo virtual.
Refutar dados da história de nosso país é um cenário onde toda pesquisa de campo, toda pesquisa científica e toda literatura criada em uma área do saber são criminalizadas, marginaliza-se o conhecimento real e acentua-se os já existentes desequilíbrios políticos e econômicos que vivemos periodicamente nos países em desenvolvimento.
É necessário salientar que atualmente esse é um problema que tem sido observado de maneira globalizada, ou seja, países como Estados Unidos e Reino Unido tem visto a mesma questão crescer nos últimos anos, problema este puxado pela ascensão de governos de direita e extrema-direita.
Então, ao incentivar que alguém comece a questionar tudo a sua volta certifique-se em aguçar um senso de curiosidade intelectual, de pesquisa e de enriquecimento.
Quem sabe assim não consigamos sair desse período tão sombrio onde o desenvolvimento humano de séculos é posto a prova por simples questionamentos vazios.
Finalizo minha reflexão com uma frase extraída da música “sulamericano” do grupo baiano BaianaSystem: “Nas veias abertas da América Latina, tem fogo cruzado queimando nas esquinas”.
Referencial Bibliográfico e Citações:
Teoria da Opinião Pública. Guaracy Carlos da Silveira Clarisse de Mendonça e Almeida Juliane do Rocio Juski Filipe Prado Macedo da Silva Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro Roberta Machado Dias da Silva. Editora Sagah. Porto Alegre. 2019.
Linguagem e Discurso – Modos de Organização. Patrick Charaudeau. Editora Contexto. São Paulo. 2008.
Relações Internacionais da América Latina. Amado Luiz Cervo. Editora Saraiva. São Paulo. 2014.