A pia da cozinha aqui de casa quebrou tem quase 1 mês.
O acidente que a vitimou ocorreu durante uma troca de azulejos que haviam estufado do absolutamente nada (erro de obra por parte da construtora que ergueu esse prédio, cabia aqui uma baita crítica ao barateamento das obras em troca de vender rápido as unidades, mas estou muito burro nesta manhã de domingo para construir um raciocínio dessa magnitude).
Bem, apesar de quebrada ainda é possível utilizar a pia com um pormenor de ter perdido uma prateleira, e agora não temos onde guardar parte dos utensílios maiores, problema que eu e meu marido solucionamos escondendo os objetos indesejáveis embaixo da mesa.
Eu batizei o amontoado de utensílios como um “problema social” de nossa casa e a solução adotada para eles é escondê-los e esquecer que estão ali sem um lugar para chamar de deles, assim como já é na nossa sociedade.
Precisamos comprar uma nova pia e pagar alguém para instalá-la, mas o dinheiro curto em parceria com as rotinas diárias que nos engolem estão dificultando uma tomada de decisão rápida e liberação de orçamento para o problema invisível.
Então seguimos aí 3 meses fingindo que nada está acontecendo.
Este relato deveria acabar aqui se eu fosse apenas uma pessoa normal que não ficasse vendo analogias entre os problemas domésticos de minha casa com a sociedade onde nasci.
A pia quebrada é um problema meu, os utensílios embaixo da mesa são problema meu, eles estão aqui 24 horas por dia então como eu poderia simplesmente ignorar isso?
Sou eu que colho os infortúnios deste problema: esconder as coisas quando vêm visita em casa, bater o pé nas coisas, ter que me deslocar sempre que preciso de uma panela de pressão, etc.
Nessa analogia barata entre sociedade e minha pia pensei: Por que as pessoas agem como se os problemas sociais não fossem responsabilidade delas? Assim como venho fazendo com a minha pia quebrada?
Será que elas pensam que esses problemas não têm impacto em suas próprias vidas?
Vamos supor um cenário hipotético então: você é uma pessoa muito bem de grana, resolve abrir seu próprio negócio, uma joalheria de alto padrão por exemplo. Começa então a fazer seu plano de negócios, encontra o local num bairro classe A sem concorrência e pouco depois inaugura uma belíssima loja cheia de cristais e lustres brilhantes pronta para receber a faminta classe emergente.
No seu primeiro mês de operação vem uma quadrilha e assalta a sua loja, no segundo mês de operação vêm outro bandido e assalta o caixa, a rotatividade dos seus funcionários é alta já que eles têm medo de que aconteça algo com eles, logo você não consegue montar uma boa equipe de alta performance.
O seu fornecedor não quer mais te entregar pedidos com medo de ser roubado e você vê seu dinheiro e seu sonho irem para o ralo aos poucos.
Antes do primeiro ano você é obrigado a encerrar suas atividades porque a cidade não oferece segurança suficiente para você manter seu negócio próprio, você seria obrigado a migrar para dentro de um local fechado pagando mais caro e sendo vizinho de porta com seus principais concorrentes.
Aí vem a pergunta de milhões: o problema da segurança pública, é um problema seu? Te deu um prejuízo enorme ter gasto capital abrindo uma loja para não conseguir mantê-la?
A cidade deveria prover um policiamento exclusivo para a sua loja? Você aceitaria pagar mais impostos em troca disso?
Vamos pensar em um outro cenário hipotético:
Você trabalha numa posição alta em uma grande companhia, tem um excelente salário e um padrão de vida confortável, como as maiores empresas se concentram todinhas em pouquíssimas regiões da cidade é um desafio para você conseguir chegar no seu trabalho cedo e ser produtivo como gostaria.
Todos os dias você acorda cedo (mais cedo do que o necessário), para ficar preso em um trânsito de 2 horas em um caminho que deveria levar apenas 40 minutos, ou seja: 4 horas do seu dia.
Mesmo tendo uma boa condição financeira você não consegue frequentar a academia, não consegue ter mais horas de sono e fica completamente estressado para cumprir compromissos externos, já que a região onde você trabalha é um completo caos.
O trânsito é problema seu? Se antes não era, se tornou.
O fato de muitas empresas se concentrarem em uma única região da cidade, fazendo que com que os trabalhadores das periferias necessitem migrar causando engarrafamentos catastróficos e panes no transporte público, é um problema seu?
Se as empresas migrassem e ocupassem outras regiões da cidade, mesmo que regiões mais periféricas, não seria maravilhoso para você obter 4 horas da sua vida diária de volta?
O que eu queria dar ênfase aqui é para você pensar que mesmo tendo uma condição financeira boa, os problemas sociais da região como pobreza, criminalidade e vias urbanas impactam você da mesma maneira, te causam prejuízos físicos, mentais e financeiros.
O coletivo existe mesmo que não concordemos com ele.
Uma cidade periférica, com caos nas vias urbanas e sem transporte público, dificulta a vida de um empresário que precisa de mão de obra na sua empresa as 08 da manhã.
Sem isso, não haverá lucro para este empresário.
O crescimento da pobreza aumenta o número de pessoas praticando crimes e assaltos, a pobreza forma massas de pessoas com muito pouco (ou nada) a perder.
Aquele raciocínio tão ignorante que surfa entre as pessoas mais alinhadas com a visão liberal é de que basta construir presídios e prender quem cometa crimes, bom, acredito que em algum momento faltarão tijolos e policiais para cuidar destes presídios.
Não é só na criminalidade que os problemas sociais impactam os mais ricos, vamos pensar na classe dos empresários que investem bastante dinheiro para criar empresas e negócios, para conseguir operacionalizar estes negócios serão necessários funcionários com qualificação.
A falta de educação superior gratuita e universal impossibilita que grandes empresas preencham sua mão de obra qualificada e tão necessária para a expansão dos seus negócios, mesmo as cidades estando abarrotadas de jovens e adultos subutilizados, em situação de desemprego ou subemprego.
Um centro da cidade deteriorado e com usuários de drogas sem assistência do Estado corroem o valor do seu imóvel e tornam a sua vida cotidiana e sua locomoção pela cidade muito difícil.
Uma empresa poderia economizar milhares de reais se mudando da Berrini para o centro de São Paulo, mas ela não consegue fazer isso pois seus clientes não chegarão até eles, seja por dificuldade na logística urbana ou por medo da criminalidade.
Eu poderia passar o resto do meu dia relacionando onde a pobreza e os problemas sociais atrapalhariam a vida dos mais ricos, mas tenho absoluta certeza que você também consegue fazer isso com muita facilidade.
Na obra “O mito e a realidade no enfrentamento à pobreza na América Latina: estudo comparado de programas de transferência de renda no Brasil, Argentina e Uruguai”, Maria Ozanira da Silva expõe que a crise capitalista, que começou no final da década de 1960 e início da década de 1970, desencadeou uma ofensiva geral do capital e do Estado contra a classe trabalhadora e as condições prevalecentes durante o auge do fordismo (O fordismo foi um modelo de produção industrial desenvolvido pelo empresário estadunidense Henry Ford no início do século XX onde as fábricas passavam a funcionar por esteira de produção e cada trabalhador se especializava em uma parte do processo).
Isso deu início a um período na história do capitalismo marcado pela destruição exacerbada das forças produtivas, da natureza, do meio ambiente e também da força de trabalho humana.
Deixamos de existir como seres humanos e passamos a existir como meio de produção e insumo de trabalho.
Em tempos de dificuldade, o capital não busca renovar-se de maneira inovadora, muito pelo contrário, ele inicia uma perseguição ao que já foi construído e ignora completamente o único meio ambiente que ele têm para sobreviver.
Corporações buscam a destruição do meio ambiente na busca incessante por recursos, colocam a massa de trabalhadores de menor nível social para abarrotar suas fábricas e pagar o mínimo possível de remuneração em troca.
Foi no contexto da acumulação fordista (produção em massa) que se expandiram os modelos de desenvolvimento inspirados em Keynes na maior parte da América Latina entre 1930 e 1970-1980, período em que o Estado assumiu um papel central no desenvolvimento econômico e na construção dos sistemas de proteção social.
Esse modelo que Maria cita acima acredita que o mercado, e tão somente o mercado, através do crescimento econômico, é quem irá solucionar os problemas de extrema pobreza e desigualdade social.
A tecla que eu canso de bater: ninguém vai abrir mão do seu lucro para ajudar você, para salvar sua vida, jamais.
O lucro é o único fim e ele justifica todos os meios dentro do capitalismo.
Um empresário não paga altíssimos salários para seus engenheiros de alta performance porque eles são benevolentes, eles fazem uma conta bem simples e entendem que para ter lucro precisam do profissional de ponta, que possui um custo alto.
Se esse custo for menor que o lucro que eles gerarão, eles estarão contratados.
Mas se algum dia um engenheiro bater na porta deste empresário e dizer que faz o mesmo trabalho pela metade do salário, não tenha sombra de dúvidas que ele será automaticamente contratado.
Dentro dos “Manuscritos Econômicos Filosóficos” de Karl Marx e Engels, é amplamente entendido que a definição da renda do trabalhador se dá por uma ampla e acirrada disputa, onde as empresas podem trocar sua mão de obra por mão de obra mais barata se assim estiver disponível no mercado de trabalho.
Existir uma massa de desempregados é benéfico ao capitalismo pois assim é possível baixar o valor dos salários.
Se só existirem 02 analistas de dados na cidade, e 03 empresas necessitando de seus serviços, ambos aceitarão os trabalhos negociando salários cada vez maiores. Agora se duas dessas empresas fecharem, teremos 02 analistas de dados no mercado e apenas 01 vaga a ser preenchida.
A empresa ofertará o menor salário para o desempregado que aceitará de imediato, e desligará o de maior salário.
O Capitalista NÃO entrega sua parte no Acordo
Vamos voltar no tempo para o ano de 2014, na boca da crise econômica que se espalharia pelo país nos anos seguintes e causaria diversos efeitos colaterais na forma como a população enxergava e lidava com a política.
Dentro de um país capitalista e de livre mercado, o que o Estado precisa entregar para os capitalistas?
Ele precisa entregar uma moeda estável, uma taxa de juros equilibrada, uma inflação dentro da meta e uma população com renda, ou seja, ocupada e economicamente ativa.
E o que o capitalista precisa entregar ao país de volta?
Produtividade.
Se o Estado entregou estabilidade e a população está ocupada, o que passa a acontecer naturalmente dentro do sistema capitalista é um efeito colateral: aumento de salários e aumento de preços generalizados (inflação).
Por que isso acontece?
Pensa em uma padaria, ela atende 100 pessoas das 500 que residem no bairro, essas 100 pessoas vão todos os dias comprar pão lá. De repente, mais 50 pessoas passam a comprar naquela padaria também, o dono da padaria precisa aumentar a produtividade: contratar outro padeiro, comprar mais farinha e otimizar o atendimento no caixa.
De repente, mais 50 pessoas pessoas passam a comprar naquela padaria, o dono precisa ampliar o espaço e contratar mais pessoas, comprar mais material e melhorar seu maquinário. Este proprietário (capitalista) faz as contas e entende que precisará mexer nos seus lucros por alguns meses para conseguir atender todas as pessoas novas que estão chegando na sua padaria.
Mas o proprietário não quer mexer no seu lucro, ele não aceita de forma alguma ficar alguns meses com lucro menor para poder ajustar seu negócio que irá receber mais clientes e futuramente lhe trazer lucros maiores.
O que ele faz?
Aumenta o preço.
Se 200 pessoas querem comprar pão por R$ 1,00 então ele aumenta o preço para R$ 3,00 e percebe que 100 pessoas ainda compram o pão.
Se mesmo assim mais pessoas ainda tentarem comprar pão lá e a demanda não cair, ele aumentará para R$ 4,00 ou R$ 5,00, mantendo assim o seu lucro e sem precisar atender a demanda que a sociedade pede.
Consegue entender essa mecânica?
Ao invés deste capitalista ampliar seu negócio, contratar mais pessoas, comprar máquinas, e movimentar mais a economia com mais produtividade, ele simplesmente opta por aumentar os preços.
Se o Estado entregou sua parte do acordo, o capitalista não entrega a parte dele em retorno que é aumentar a produtividade.
Retornamos ao ano de 2014 quando o país bateu a menor taxa de desemprego histórica, que está se repetindo agora em 2024.
Em apenas 1 ano, 2015, a crise econômica iria varrer a classe média e sua renda do mapa, mergulhando o país novamente em anos de recuperação lenta e gradativa da produtividade.
A culpa e as críticas voltam-se sempre ao Estado, jamais ao capitalista que não entregou sua parte do acordo porque não aceitou ter menos lucro.
O que o mercado e o modelo liberal capitalista não explicam, é como farão para distribuir a renda entre uma sociedade empobrecida e marginalizada e uma outra pequena minoria herdeira e enriquecida, dona dos meios de produção.
Eu teria muito medo de viver nessa realidade acima se fosse um super rico, pois em algum momento essa massa empobrecida que não tem nada a perder irá se rebelar contra eles e destruir seu sistema.
Então, até para manutenção deste sistema a questão social acaba virando problema dos super ricos também.
Como economista, eu enxergo que só existe o caminho de uma mão forte por parte de um Estado planificado, conceito que é abominado pelos liberais, que desejam a existência de um estado mínimo para que seu lucro possa crescer sem interferências, destruindo o planeta e seus recursos limitados.
Na década de 1990 sob um forte espectro neoliberalista o planeta caminhou para a abertura econômica dos mercados, incluindo os da periferia do capitalismo que mal haviam rascunhado suas constituições e planos de desenvolvimento social, começam a ser combatidos e discriminados a introdução de novos direitos sociais no Brasil, enquanto países desenvolvidos já estavam avançados nessa agenda o terceiro mundo iria começar a se inserir tardiamente, e com um nível injusto de competição.
Ao alinhar-se com o consenso estadunidense e europeu, a América Latina passava a receber competição direta destes países após décadas de mercado protegido e fechado, tal competição foi desleal e promoveu a extinção de milhares de marcas nacionais.
Entenda que no modelo de livre mercado, temos a livre concorrência como um árbitro imparcial, e o discurso do mérito como um catalisador.
Empresas americanas e empresas latino-americanas estavam em um patamar irreal de competição e a onda neoliberal que varreu o continente era promovida nestas bases e discursos.
O que eu estou tentando fazer aqui é que você entenda que o discurso de que somos todos iguais e quem venceu é quem trabalhou ou se esforçou mais é completamente manipulado e falso.
Este discurso faz com que você busca incessantemente um sonho que é impossível para a sua realidade socioeconômica, te colocando em competição direta com outras pessoas que nasceram em famílias estruturadas financeiramente, com acesso a educação de ponta, a saúde e ao desenvolvimento pessoal.
Não consigo enxergar como olhar para a extrema pobreza pode te tornar indiferente, ou simplesmente como se não fosse um problema que te afeta.
Quando eu olho para a extrema pobreza, para os marginalizados e para a população vulnerável, entendo perfeitamente que posso fazer parte deles bastando um pequeno desequilíbrio na malha econômica e produtiva do planeta.
Basta apenas que o capitalismo dê um espirro para que milhões de pessoas da classe média caiam para a linha da pobreza. E os últimos anos provaram que esses espirros estão muito repetidos.
Você não está protegido! Pare de agir como se você fosse imune a isso!
Pare de agir como se isso não fosse problema seu.
Dentro do sistema em que vivemos existe uma fragilidade muito grande que foi exacerbada com a busca pelo lucro desenfreado, muito do nosso ecossistema foi destruído, o aquecimento global deixa de ser um assunto ligado a um futuro muito distante e torna-se uma realidade que será sofrida já pela próxima geração.
O enfrentamento a pobreza na América Latina não será solucionado doando cestas básicas e agasalhos para a população vivendo marginalizada, ele só é possível quando tornarmos a distribuição de renda e a planificação de nossa economia uma realidade.
Combatendo com todas as forças o lucro erosivo que avança sobre nossa saúde e sobre nosso único habitat.
Então, os problemas sociais também são problema seu! Assim como a minha pia quebrada e minha massa de utensílios sem lugar para repousar.
Abraços!