O ser humano já praticava o storytelling antes mesmo do marketing ser inventado.
A mecânica é muito simples: para vender produtos eu preciso que os consumidores se identifiquem comigo e com a minha história.
Funciona eu subir ao palco e dizer que virei CEO desta grande empresa pois meu pai a fundou? Jamais! Quem vai comprar isso?
Eu que não vou.
Uma tarefa árdua que as empresas perseguem assiduamente desde os primórdios do século XX, quando o mercado consumidor passou a ser um grande mimado dizendo: “não vou gastar meu dinheiro enquanto você não brilhar meus olhos com uma história digna de Hollywood”.
Nasce o mito da garagem.
Assim como o “mito da garagem” é tão importante para as empresas de tecnologia, que têm as histórias de seus fundadores amarradas a mágicos contos de empresas que teriam se iniciado dentro de seus quartos de faculdade ou na garagem de seus pais.
Ah essas histórias sim me fazem querer comprar um iphone de 10 mil reais!
Tome aqui o meu dinheiro!
Nem todo herói usa capa e nós não conseguimos enxergar facilmente o quanto essas histórias de superação e perseverança escondem fatos muito relevantes por trás, fatos que não interessam ao grande mercado consumidor por serem completamente sem magia.
No caso do mito da garagem Tom Avendaño cita o fato de que o “quarto de faculdade” onde Mark Zuckenberg morava, ficava em nada menos que dentro de Harvard University, a mais prestigiada e concorrida universidade de elite dos Estados Unidos.
Enquanto o Brasil português ainda servia de plantação de açúcar e raptava africanos para escravizar, Harvard já existia, sua história já conta com 387 anos.
O custo para estudar em Harvard está em torno de U$ 55 mil dólares (não basta ter o dinheiro, você precisa de um currículo escolar impecável para que eles aceitem o seu dinheiro).
Quando você pensar em Mark e na sua história de sucesso com o Facebook, você não pode ser inocente de achar que ele entrou em Harvard prestando um vestibular. Nem que seus colegas de quarto, que o ajudaram na construção da rede, eram apenas estudantes comuns sem dinheiro algum.
Os alunos de Harvard pertencem as famílias mais ricas e mais influentes da América do Norte, e diferente de uma pessoa média comum, Mark foi privilegiado com uma educação avançada desde cedo e com uma rede de amigos de faculdade que possuíam capital financeiro e intelectual para investir em seu produto.
O que isso tem a ver com o tão citado Warren Buffet?
Warren é utilizado à exaustão por investidores e pessoas que trabalham na área de finanças por ser o maior e mais resiliente investidor que já viveu no planeta.
Uma história de sucesso.
A fortuna de Warren é avaliada em 121 bilhões de dólares.
Antes de seguirmos eu preciso fazer uma ressalva sobre números bilionários.
Esses super números são muito difíceis de serem assimilados pelo nosso cérebro porque acabam se tornando abstratos, a ponto de acharmos que existe pouca diferença entre 1 milhão e 1 bilhão.
- Para contar até 1 bilhão, um ser humano verbalizando um número a cada 3 segundos, levaria 95 anos para concluir a atividade.
- Se você ganhasse R$ 100,00 por dia, levaria 23.397 mil anos (o ser humano habita a terra há 300 mil anos) para juntar seu primeiro bilhão.
- Se pegarmos a fortuna do Warren e dividirmos para TODOS OS SERES HUMANOS VIVOS NA TERRA hoje, cada ser humano (não importa a idade, nem se mora no Afeganistão ou Costa Rica) receberia U$ 17,00 dólares.
O Sudão do Sul é um dos países mais pobres do planeta, com uma população de quase 13 milhões de pessoas.
Essas 13 milhões de pessoas produzem um PIB de pouco mais de 23 bilhões de dólares, ou seja, 19% da fortuna de Warren Buffett.
Apenas um ser humano detêm uma fortuna 80% superior ao PIB de um país inteiro, esse é o dado que você precisa ter em mente para seguirmos.
O que nunca mencionam na história de sucesso de Warren e que provavelmente é bem diferente da sua, é que o pai, Howard Buffett, foi um político do Congresso Americano e atuava como corretor na Bolsa de Valores.
Seu avô, Ernest Buffett, era varejista dono de um mercado e em 1902 já era presidente do Omaha Retail Grocers Association e do Nebraska Retail Grocers Association.
Se você sempre imaginou Warren como um cidadão comum, com um sonho e muita disciplina, preciso te informar que não foi bem assim.
Naturalmente que existe toda uma história de vida particular aqui, uma vez que Warren só se torna um bilionário nos anos 80 quando já tinha 56 anos de idade. Também levo em consideração que a sua fortuna foi sim adquirida através do mercado financeiro e não de herança familiar.
Sua carreira foi construída no mercado financeiro e com grandes acertos em investimentos.
Ainda na década de 1920, ele trabalhava com seu pai em uma corretora mas recebeu uma oferta de trabalho de seu mentor, o influente economista britânico Benjamin Graham. Acho importante salientar que você não consegue uma mentoria com Benjamin Graham estudando em uma escola pública ou vivendo no subúrbio.
Perceba que tanto na história de Mark Zuckerberg ou de qualquer um desses admirados nomes, há sempre um background que não é divulgado, esse background é sempre: uma instituição muito forte e elitizada, uma família com poder financeiro, um pai ou um avô com poder político.
Quando passamos a admirar essas personalidades é muito fácil pensar que essas pessoas emergiram do nada e sem capital algum, ou seja, da pobreza, como nós pessoas comuns que vivem da venda de sua força de trabalho.
Essa é a maneira que a história é contada para que todos se sintam energizados e com a errônea visão de que qualquer um pode trilhar esse caminho.
Torna-se muito importante que você acredite que também pode enriquecer com o mito de Warren Buffett.
Basta que poupe o seu dinheiro e comece a investir.
O que eu busco salientar aqui é que nós precisamos ter consciência do nosso papel e da nossa representatividade na sociedade antes de cair no conto do investidor.
Essa é uma jornada de desconstrução que é muito difícil percorrer.
Afinal, quem não deseja viver com a esperança de que pode vir a se tornar alguém com bastante capital?
O sonho liberal existe porque ele vende bem, ele convence as pessoas em seu ego de que há um caminho, há sempre esperança.
Um homem de classe média, trabalhador, que com muita disciplina consegue investir e juntar um patrimônio de 121 bilhões de dólares não é bem algo simples de acontecer.
Já é algo bem raro de acontecer com um homem de poder financeiro e político.
Para um vendedor de força de trabalho essa probabilidade deve cair para 0,001%.
O que dificilmente as pessoas entendem é que esses heróis possuem muitas particularidades em suas histórias pessoais e familiares, se formos fazer um filtro, descobriremos que a massiva maioria deles foram inteiramente construídos com bons exemplos familiares e uma formação escolar de ponta.
Adquirir educação financeira, começar a poupar seu dinheiro e comprar investimentos é muito importante, é imprescindível nos tempos atuais mesmo para quem tem pouco recurso.
Não há discordância quanto a isso.
Minha fala aqui não visa transmitir uma mensagem que demonize os investimentos, muito pelo contrário, eu fortemente incentivo que todos acessem o mercado financeiro o mais cedo possível em suas vidas economicamente ativas.
Nós precisamos que as pessoas mais pobres comecem a ter mais entendimento e independência sobre seu capital, por menor que ele seja, por mais escasso e difícil que ele seja.
Esse tipo de mudança vira o ponteiro uma vez que temos dinheiro de pessoas mais pobres alocados em causas e empresas que elas acreditam.
Agora a maneira como te vendem esse sonho neoliberal é uma grande problemática, podendo te desviar do melhor perfil de investimentos que se adequaria a você ou mesmo te fazendo perder dinheiro ao alocar capitais em ativos de alto risco com a promessa do rápido enriquecimento estilo Warren Buffett.
Esse tipo de discurso também te aliena a ponto de você não conseguir entender o seu papel e as suas chances de sucesso dentro do capitalismo, em outras palavras, tiram a sua capacidade de adquirir consciência de classe.
Para Warren, nenhum problema perder alguns dígitos de sua fortuna.
Para mim, para você e para o Sudão do Sul, fica um pouco mais complicado concorda?
Abraços.