Os apostadores de loteria assíduos gastam dezenas de reais tentando acertar os números da Mega Sena. Esse tipo de apostador reconhece que quer ganhar milhões da noite para o dia, de maneira fácil e gastando pouco (as vezes nem tão pouco assim).
Tenho notado que os investidores mais alienados enxergam o mercado de capitais do mesmo jeito: uma possibilidade de ganhar milhões, com a pequena diferença que ele enxerga nas operações de investimentos uma justificativa para o seu comportamento.
Deixa-se de consumir um jogo de azar qualquer e passa-se a consumir uma promessa de retorno.
A promessa de retorno nem sempre se cumpre.
Com essa euforia de rápido enriquecimento, o investidor entra naquela onda de achar que tudo é um bilhete de loteria: a nova criptomoeda, a ação da empresa tech, qualquer coisa que virará esse ponteiro mobiliário.
Para os grandes ricos nenhum problema perder algumas dezenas de reais na tentativa de ganhar milhões.
Para você, mero mortal, é preciso ter um pouquinho mais de cuidado.
Antes de nós construirmos esse raciocínio, eu queria te introduzir em um assunto muito importante:
Fetichismo da Mercadoria
Em uma linguagem vulgar, podemos utilizar o conceito de fetiche, que conhecemos como conotação sexual, onde buscamos fantasias e sobreposições à realidade em troca de sentir prazer físico.
Aqui usaremos na conotação de “feitiço”.
Em uma sociedade capitalista a mercadoria torna-se um fetiche para o ser humano, que baseia toda sua existência no universo em uma perseguição aos mais variados tipos de bens de consumo e de dinheiro.
Em outras palavras: vivemos a vida toda só pensando em comprar produtos.
O conceito é um pouco complexo, ele envolve o Valor de Uso Puro (se eu planto laranjas, as laranjas não são mercadorias, são valores de uso). E envolve também o Valor de Uso Subordinado (eu uso as laranjas para plantar mais pés de laranja e vendê-las, transformando-as assim em mercadoria).
A forma mercadoria é o caráter de valor que aderimos aos produtos do trabalho no processo social mercantil, ou seja, o preço e o valor que colocamos nas coisas.
Está ficando mais complexo do que eu queria, então vou dar um exemplo: um anel de diamante tem valor de uso altíssimo, é um status social e de poder utilizá-lo. Agora, se este anel vale R$ 500.000,00, adiantaria eu pegar um cheque de 500 mil reais e enrolar no meu dedo? Esse papel enrolado no meu dedo, mesmo valendo R$ 500.000,00 não gera nenhum caráter de valor.
Isso se aplica, inclusive, às pessoas que não podem pagar por estes produtos, mas almejam que um dia poderão tê-los.
Não há aqui algo que nos motive como seres vivos pensantes: você poderia sentir prazer em ensinar crianças com dificuldade de aprendizado, em desenvolver técnicas de agricultura, em salvar o meio ambiente, ao invés de sentir prazer em comprar um Iphone.
A pergunta que me faço todo santo dia é:
O que mais podemos fazer durante nossa existência humana que não seja a busca por mercadoria?
Estudar, se expressar artisticamente, praticar esportes, se conectar a natureza ou nutrir seu corpo de maneira mais saudável.
A mercadoria invade e anula todos os traços naturais que os seres humanos deveriam possuir.
Praticar um esporte torna-se ferramenta para a busca de um corpo padrão que as redes sociais vendem como beleza, estudar torna-se a ferramenta para o enriquecimento, se alimentar torna-se ingerir alimentos ultra processados que adoecem o corpo e não promovem o bem-estar.
Poderíamos virar a noite toda aqui citando como a mercadoria molda o ser humano, apagando seus traços e sua conexão com o meio ambiente.
Os corpos precisam ser redesenhados, os rostos refeitos e remodelados, é preciso passar fome em prol de um padrão de peso, e assim infinitamente.
O fetichismo da mercadoria é um conceito fundamental na teoria social, especialmente na obra “O Capital” de Karl Marx.
Ele se refere à maneira como as mercadorias são percebidas e valorizadas na sociedade capitalista, adquirindo características quase místicas ou mágicas.
Em termos simples, o fetichismo da mercadoria surge quando as relações sociais entre as pessoas são obscurecidas, e as relações entre mercadorias assumem uma importância exagerada.
O ser humano não tem mais importância, o que importa são os bens que ele pode produzir.
Em uma sociedade capitalista, as mercadorias não são apenas objetos úteis ou necessários, mas também portadoras de valor de troca e, portanto, de poder econômico.
O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. No entanto, esse valor não é imediatamente aparente quando observamos uma mercadoria. Em vez disso, as mercadorias parecem ter valor intrínseco e autônomo, quase como se fossem dotadas de vida própria.
O fetichismo da mercadoria envolve a inversão da relação entre os produtores e suas criações. Em vez de as pessoas controlarem as mercadorias que produzem, as mercadorias parecem exercer controle sobre as pessoas.
Isso é expresso na famosa frase de Marx:
“Relações sociais entre as próprias pessoas assumem a forma fantasmagórica de relações entre coisas.”
A forma como as mercadorias são exibidas, anunciadas e comercializadas na sociedade capitalista contribui para essa fetichização. A publicidade, por exemplo, muitas vezes não apenas destaca as características utilitárias de uma mercadoria, mas também cria narrativas que associam valores sociais, status e identidade à posse desses objetos.
O fetichismo da mercadoria é um fenômeno que contribui para a alienação das pessoas em relação ao processo de produção e ao controle sobre suas próprias vidas.
Você é o que você veste, o carro que te transporta, a casa onde mora e os lugares que você frequenta.
Suas características são apagadas. Ninguém sabe se você gosta de escrever poesia, ninguém sabe que você sofre em ver pessoas dormindo nas ruas, ninguém se interessa se você quer estudar para explorar energias renováveis (a não ser que isso gere bastante dinheiro e negócios).
Investimentos como um Bilhete de Loteria
O que Marx não poderia prever seria como o mercado de capitais passaria a ocupar as prateleiras dos mercados tradicionais na sociedade do século XX e XXI. Estamos assistindo um aumento exponencial de investidores de todos os níveis de renda e de classes sociais.
Em contrapartida, estamos vendo também o empobrecimento na maneira como as relações de investimento estão sendo construídas, onde o mercado de capitais deixa de ser um lugar para aumento de renda e movimentações providas de análise e objetivos, para um lugar com prateleiras de supermercado que exibem cartazes do tipo “enriqueça aqui”.
Tornam-se comuns conversas do tipo: tal ação irá subir X, tal empresa irá entregar resultado Y.
Também se tornam comuns análises que salientam um novo mercado em potencial que irá angariar muito dinheiro em pouquíssimo tempo, basta lembrar-se das criptomoedas e do metaverso.
Muita gente corre para investir seu dinheiro nessas promessas de lucro rápido e astronômico da mesma maneira que correm para comprar um bilhete da mega sena quando sonham com um número.
O anseio do enriquecimento fácil e rápido vira o combustível para a vida de muitas pessoas.
Páginas de coaches, influencers e personalidades da mídia passam a explorar esse nicho tão rico e abundante onde passam a vender produtos e consultorias que acentuem ainda mais esse fetiche pelo bilhete de loteria.
Uma coisa que me assusta profundamente é que pessoas com pouco ou nenhum capital também engrossam a fila de admiradores do mercado e sonhando em se tornar o Warren Buffett do século XXI.
Pessoas que compram 5 ações da Netflix e passam a esperar o dia que suas contas bancárias serão abençoadas com dividendos astronômicos!
Desconstruindo os Dividendos
A Vale do Rio Doce anunciou pagamento de dividendos de R$ 2,33 para os acionistas, isso significa que se você possuísse 10.000 ações da Vale você receberia R$ 23.300,00.
Uau mas isso é incrível!
Como fazer parte disso?
Simples, compre 10 mil ações da vale, atualmente cotadas em R$ 75,22, ou seja, R$ 752.000 reais.
Se você tivesse 752 mil reais, confiaria em colocar ele inteiro em uma única empresa da bolsa de valores? Eu espero sinceramente que não.
Todo mundo possui 752 mil reais disponíveis para investir? Não.
Aliás, são bem menos pessoas do que você imagina.
Você possui uma casa própria e uma renda garantida que te permitissem se dar o luxo de pegar todo esse dinheiro e aplicar na Vale?
Entende que isso não te contempla?
Fica bem claro, para mim, que para você ter o lucro e a renda que tanto sonha, precisaria de um pouco mais do que algumas ações para conquistar isso.
Para receber uma renda boa de dividendos é necessário criar uma carteira robusta, diversificada e cara de ações e outros produtos financeiros.
Essa jornada não é fácil e nem rápida de ser trilhada, especialmente se você não possuir grandes quantias de capital e sobreviver da renda do seu trabalho.
Eu não estou demonizando e nem dizendo que você não deveria investir na bolsa e no mercado, muito pelo contrário, eu acredito que o mercado financeiro é para todos e todos os níveis de renda podem se beneficiar dele.
Mas ele precisa vir com consciência de classe.
Adquirindo Sobriedade e Focando na sua Realidade Financeira
Quando deixamos de sofrer influência do fetichismo que envolve o mercado de investimentos, podemos adquirir uma ferramenta poderosa de preservação do nosso dinheiro.
O poder de compra do trabalhador e das famílias é constantemente alterado pelos fatores do mercado e pelo cenário macroeconômico do país e do mundo.
Isso significa que é mais um obstáculo que as pessoas de renda média precisam enfrentar enquanto lutam para se manter empregadas e conseguindo uma qualidade média de vida.
Focar na sua realidade financeira envolve uma avaliação honesta dos seus recursos, despesas e metas. É essencial compreender suas fontes de renda e criar um orçamento realista. A estratégia financeira deve ser adaptada às suas circunstâncias individuais, considerando suas aspirações de curto e longo prazo.
A autoconsciência financeira é o primeiro passo para uma gestão eficaz e sustentável do seu dinheiro.
Quando você adquire essa percepção passa a adquirir os investimentos que se encaixam ao seu perfil e à sua realidade, um investidor que pode precisar resgatar seu dinheiro no curto prazo é diferente de um investidor que possui fundo de reserva formado, e tem estabilidade suficiente para arriscar mais e adquirir produtos de longo prazo com maior retorno.
Uma pessoa pode adquirir ações de uma empresa só porque ouviu que elas crescerão muito, e acabar perdendo seu dinheiro.
Se você for um multimilionário eu fortemente recomendo que você compre as ações da Vale, se você sobrevive com a renda do seu trabalho como eu, é melhor planejar um pouco melhor.
Abraços!